terça-feira, 6 de outubro de 2009

FALAR DE DEUS HOJE

FALAR DE DEUS HOJE
– considerações a partir da ação pastoral -

Introdução

“Quando quero rezar e não há uma Igreja por perto, me ajoelho em frente a uma árvore e rezo”.
Cartola

Não há possibilidade de se falar de Deus hoje em dia, sem se deixar tocar por Deus e a partir deste toque agir, na pastoral: em nossos grupos, comunidades, paróquias e dioceses. A partir do hálito de vida soprado em nossas narinas por Ele, nossa sensibilidade se recusa a ver a condição humana fora da relação com o cosmo: com toda a criação, com todos os seres viventes. É fazer valer o pedido do salmo 27,4: “Uma coisa peço a Iahweh, a coisa que procuro: é habitar na casa de Iahweh todos os dias de minha vida para gozar a doçura de Iahweh e meditar no seu templo”. [1]
Leonardo Boff, afirma que, “nós brasileiros, mais do que um povo religioso, somos um povo místico. Nós não acreditamos em Deus, isso é coisa dos europeus, nós sentimos Deus. Sentimos Deus na pele, no corpo, e por isso toda hora falamos: vá com Deus...fique com Deus...Deus está dentro do nosso cotidiano na vida. Não dá para entender o mundo sem colocar Deus dentro. Jesus Cristo apresenta Deus como Abbá, um pai que tem as características de mãe. Como uma galinha que cuida dos pintinhos, como o pai do filho pródigo que acolhe o filho: olha na esquina, ele está chegando, corre ao encontro cheio de misericórdia, isto é, cheio de entranhas, coisas que as mulheres têm. É um Deus-ternura, mais mãe do que pai, ou então um pai-maternal e uma mãe-paternal... Encontrar Deus não só nas Escrituras Sagradas, nos textos da Tradição, na hóstia consagrada, no cálix bento, mas encontrar Deus na natureza, na pedra, no sol, encontrar Deus nos pobres, de tal forma que abraçando o mundo, está se abraçando Deus”. [2]
Falar de Deus hoje deve ter o ponto de partida na realidade em que estamos plantados, na realidade em que somos adubados, na realidade em que brotam os frutos da nova estação, na realidade em que devemos ser podados e cortados para que uma nova vida germine. Esta realidade compreende um mundo em que a economia é globalizada e excludente, a técnica é acelerada, a comunicação é sem fronteiras e há um rápido crescimento do pluralismo religioso. E podemos dizer que o tempo ainda não é o de negar a razão, mas não podemos viver a ditadura da razão...a dor do mundo está aí na nossa frente...os valores não são animados e empurrados somente pela ética, mas sim pelo coração, pelo sentimento, que está diretamente enraizados na concepção que temos de Deus. O mundo é partilhado vergonhosamente pelo G-8 e cortejado pelo G-20, sendo que, quem deveria estar tratando dos assuntos referentes a humanidade e a vida do Planeta seria a ONU, mas isso, infelizmente é um sonho, que tão cedo não veremos realizado...mas, precisamos estar atentos como as virgens prudentes do Evangelho.
Falar de Deus hoje é não esquecer as nossas matrizes culturais: indígena, européia e africana. Elas nos lembram todos os dias que somos o povo mais propenso ao diálogo e ao encontro, pois estamos juntos e misturados na dinâmica da vida. Somos como o trabalho das mulheres na produção da panela de barro em Goiabeiras, Vitória/ES; que tiram do barro, do mangue e das árvores do mangue, o necessário para moldarem o símbolo que ilustra tão bem a cultura capixaba e que embeleza a culinária deste mesmo povo; é um trabalho honroso e divinal, que mantêm viva a memória daquelas outras tantas paneleiras que iniciaram a tradição da fabricação das panelas de barro conhecidas mundialmente. E elas são descendentes de indígenas, de europeus, de africanos e por isso, a moqueca capixaba é a melhor moqueca do mundo e o sexto melhor prato para ser apreciado segundo a OMS, pois não engorda, e é leve...mas, na raiz de tudo isso está a disponibilidade, o empenho e a garra de gerações inteiras de mulheres, que assim como Sefra e Fua, ajudam a darem à luz o sonho da posteridade; e ao perpetuarem este sonho, e ao fazerem feliz todo um povo, e se aproximam muito de Deus e vêem a Deus mais do que a maioria de nós.
Falar de Deus hoje é percorrer, é saborear, todo o projeto de salvação, em que sua prática e pedagogia libertadora, está implícita e explicita na Primeira e na Segunda Aliança, no Concílio Vaticano II, nas conferências de Medellín, Puebla e Aparecida, fazendo em nós uma transformação, impulsionando para a prática pastoral: Para que todos tenham vida e a tenham em abundância. Que rezem, orem o Pai Nosso, mas, reivindiquem a justiça e a solidariedade do Reino, o Pão Nosso.

1 - Quem, afinal, é Deus?

“Nosso Deus é o artista do Universo. É a fonte da luz, do ar, da cor. É o som, é a música, é a dança. É o mar, jangadeiro e pescador. É o seio materno sempre fértil, é beleza, é pureza e é calor”.
Zé Vicente

Ele sempre irá responder: “Eu sou aquele que é!” (Ex 3,14).
Ele é realidade transcendente. Sendo transcendente nunca saberemos de fato o que ou quem é Deus, só sabemos daquilo que não é, pois a nossa idéia de Deus é sempre limitada. Deus está além de tudo que possamos sonhar ou pensar ser Deus. Mas o desejo que possuímos é o de que da mesma forma que Jesus, nós também possamos crescer em graça e em sabedoria, por uma intimidade profunda com Ele, onde a nossa existência será inspirada e portanto poderemos chamá-lo de Abbá.
Na América Latina e no Caribe, diferentemente da Europa, Deus é aquele que escolhe os pobres (não são os pobres que escolhem a Deus), pois aqui, neste Continente, a pobreza é institucionalizada. Somos um Continente de hapirus (os mais pobres - pessoas desalojadas, sem terra, excluídas nas cidades e nos campos), onde desde cedo, por causa do batismo, alimentamos a vontade de construir uma sociedade distinta, sem exploradores e explorados; uma terra sem males.
O Deus que foi passado para a geração que nasceu no Brasil nos anos 70 e era jovem nos anos 80 do século XX, foi o Deus da Teologia da Libertação: divinamente humano, humanamente divino; próximo ao seu povo, em suas lutas, em seus sorrisos, em seus martírios. Um Deus que entrava nas casas através da Bíblia traduzida para o português e nas mãos do povo...e lá ia o povo se reunir debaixo de uma árvore, para se ver, sorrir e celebrar a vida, de um jeito simples, despojado, de analfabetos à homens novos, de analfabetas à mulheres novas. Eram as comunidades eclesiais de base se espalhando por todo o Brasil, sofrendo na pele, perseguições, tal qual as Primeiras Comunidades, por causa do Reino, sendo a voz profética num tempo em que o milagre era economicamente favorável às elites nacionais, fazendo com que os ricos se tornassem cada vez mais ricos e os pobres cada vez mais pobres.
Foi um período profético. Deus caminhava junto. Ele via a miséria do povo, ouvia seu grito por causa dos seus opressores e descia afim de libertar... cuidava das feridas e soprava, beijava e abraçava, e os agentes de pastoral iam em frente, havia um ardor missionário contagiante, pois acreditar em Deus sempre foi uma opção de vida. O convite para participar da messe era feito, muitas vezes, com o testemunho daqueles que tombaram e daqueles que insistiam em continuar, mas aceitar ou não, sempre foi uma escolha pessoal. Antes do Concílio Vaticano II, se tinha uma atitude de fé que levava a acreditar em Deus, envolvendo razão e levando o ser humano a aprender uma doutrina, esta por sua vez conduzia a um saber sobre Deus e nada mais. Com o Concílio Vaticano, Medellín, Puebla e Aparecida, a atitude leva a comprometer-se com Deus, envolvendo todo o ser, este desenvolve uma prática de vida que o conduz a uma conversão, a uma mudança, de dentro para fora.
José Maria Vigil no que refere a ação pastoral nos diz que, “para o Jesus histórico o Deus do Reino é o centro, e não há nenhuma outra mediação para ele senão a promoção de seu próprio Reinado. A missão de Jesus não é outra senão o anúncio e a promoção desse Reino. (...) Na linguagem do evangelho de Jesus, Deus é sempre o Deus do Reino, e o Reino é sempre o Reino de Deus, de forma que o teocentrismo e reinocentrismo se implicam mutuamente. (...) Esse foi o tema de sua pregação, sua obsessão, seu sonho, a paixão que o movia, a causa pela qual viveu e lutou, aquilo que em sua vida teve valor absoluto para ele. A figura de Jesus não foi a do fundador de uma religião ou de uma Igreja, e sim a de um profeta apaixonado pelo Reino de Deus, causa última que o fez viver e morrer”. [3]
O Deus que aparece na história de Abraão, de Moisés, de Elias, de Rute, de Débora, de Maria, de Jesus, de Tiago, de João, de Paulo, de Lucas, de Priscila, de Maria Madalena, e outros, não são os ritos religiosos, mas os atos concretos. O que foi ouvido por Abraão, também é ouvido por nós hoje.
“A ação de Deus se dá através da nossa ação. E pode se perguntar: “Deus faz milagre na História?”. Faz! Mas jamais fora das coordenadas da História.” [4]

2 - Um Deus para hoje

“No chão da vida nasce o Povo de Deus. No Deus da Vida nasce o Povo dos Céus”.
Emerson Sbardelotti / Lula Barbosa

Qual é a imagem de Deus que nós temos?
Qual é o conceito que temos de pastoral?
Perguntas importantes para a nossa caminhada enquanto seres humanos, para o nosso artigo, para a nossa vida em grupo, em comunidade.
A imagem de Deus na Primeira e na Segunda Aliança que proponho e que se aproxima mais de uma pastoral comprometida com o Reino é esta:
Na Primeira Aliança, o grande perigo para Israel era contaminar Iahweh com os cultos da fecundidade. A paternidade divina surge fundamentada na saída do Egito. Como dissemos anteriormente, Deus escolhe os hapirus. Os profetas usarão expressões cheias de ternura para significarem esta paternidade, que na verdade é maternidade.
Na Segunda Aliança, teremos a experiência fundante do Abbá em Jesus. Esta vivência constitui a intimidade original e profunda de sua personalidade. Por causa dela Jesus cria uma reação em cadeia contaminando todo o seu grupo de amizades, levando-os à radicalidade infantil de chamar Deus de papai, uma experiência única. Deus é para sempre definido como paternidade revelada e entranhável, como fonte de ternura e confiança. Deus é o que alimenta o mistério em Jesus e a partir deste se abre para todas as criaturas.
Fuentes nos diz que “etimologicamente, o termo “pastoral” deriva de pastor. No início do seu uso (finais do século XVIII e princípios do século XIX) referia-se basicamente à doutrina e prática de formar pastores (presbíteros), e ao modo de realizar o ofício da cura animarum (cuidado das almas) próprio do pároco. A partir daí, este conceito foi evoluindo, ganhando grande variedade de significados, alguns reducionistas, outros ambíguos ou mesmo errôneos”. [5]
Uma nova imagem para Deus hoje, uma nova pastoral para hoje, só terá sentido, se primeiro, quem busca seus significados, souber o que enquanto ser humano significa. Os profetas da Primeira Aliança e o próprio Jesus sabiam muito bem o que significava ser judeu naquele momento da história da humanidade e a missão que tinham a realizar. Sentiam muito bem a imagem de Deus que os animava.
Falar hoje de uma nova imagem de pastoral num mundo globalizado é mais complicado do que se imagina. Com o advento da internet, as juventudes, não se colocam mais a disposição para o exercício da fé em comunidade...o sagrado está no shopping center e a virtualidade é mais próxima do Deus espiritualizado que imaginam para si. Apesar de conhecerem e saberem o que é um pastor e seu ofício, eles residem em sua maioria em cidades populosas, onde dificilmente verão rebanhos e montanhas ao estilo clássico bíblico, portanto o discurso do Bom Pastor, por exemplo, irá soar apenas como mais uma fábula ou como um preceito moral de fim de história que os mais velhos contam ou contavam.
Mas há também as juventudes que se sentem atraídas por Deus e estão se colocando à disposição nas mais diversas equipes e pastorais. E conscientes do papel que desenvolvem, vão dando um novo vigor à caminhada de suas comunidades, paróquias, dioceses, independente se são ou não apoiados pela hierarquia, o que sempre representou um grande problema, principalmente para as Pastorais da Juventude, mas que também sempre foi encarado como desafio a ser vencido...e foram e venceram. Olhe a quantidade de jovens que participaram do último Intereclesial das Cebs, acontecido em Porto Velho, em julho de 2009, e que estão se mobilizando para participarem do Encontro Nacional de Fé e Política em Ipatinga, em novembro de 2009 e para o Fórum Social Mundial na Grande Porto Alegre em janeiro de 2010. O Espírito de Deus sopra sempre onde ele quer. Não há como controlar. Só podemos sentir e nos maravilhar e seguir em frente.

Conclusão

A experiência de Deus é senti-lo em intimidade profunda, amorosa, através da fé em Jesus e colocado em prática nas ações comunitárias em que estivermos inseridos. O encontro e o diálogo com Deus na oração nos impulsiona todos os dias a irmos na busca do irmão, do outro. Pois Deus se manifesta na realidade humana, em sua cultura e em sua história sem excluir ninguém. Ele aglutina, sorri, se compadece, abraça e beija. A ação pastoral enquanto serviço emanado do amor é uma autêntica vivência de Deus.

____________
[1] BÍBLIA de Jerusalém – nova edição, revista e ampliada. São Paulo: Paulus, 2002.
[2] PROGRAMA Sempre um Papo – Leonardo Boff. Belo Horizonte: 2009.
[3] VIGIL, José Maria. Teologia do Pluralismo Religioso – para uma releitura pluralista do cristianismo. São Paulo: Paulus, 2006.
[4] TAVARES, Emerson Sbardelotti. O Mistério e o Sopro – roteiros para acampamentos juvenis e reuniões de grupos de jovens. Brasília: CPP, 2005.
[5] FUENTES, Salvador Valadez. Espiritualidade Pastoral – como superar uma pastoral “sem alma”?. São Paulo: Paulinas, 2008.


Emerson Sbardelotti
emersonpjbes@hotmail.com

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